Parece até outro O Globo. Outro jornalismo. Outra consciência. De repente, Malu Gaspar, aquela mesma que assistiu anos de silêncio obsequioso enquanto Alexandre de Moraes virava sinônimo de onipotência togada, resolveu descobrir que a Constituição existe. Que leis existem. Que há ética, moral e — veja só — limites de decoro. Quando é conveniente, claro.
A coluna de hoje é praticamente um terremoto editorial: não apenas cita, mas detalha, linha a linha, um contrato de R$ 3,6 milhões mensais — isso mesmo, mensais — que a esposa do “deus supremo” Alexandre de Moraes mantinha com o enrolado Banco Master. Um contrato amplo, genérico, nebuloso, sem causa específica, mas com remuneração de cair o queixo: R$ 129 milhões ao final dos três anos pactuados, caso o banco não tivesse ido para o buraco antes.
E não foi só o valor. O texto de Malu Gaspar funciona como uma metralhadora giratória — mas não contra Bolsonaro, não contra os “inimigos da democracia”, não contra os suspeitos usuais. Pela primeira vez, o canhão foi apontado para o Olimpo do Supremo. E a explosão foi bonita de ver: mensagens internas de Daniel Vorcaro mostrando que os pagamentos ao escritório de Viviane de Moraes eram “prioridade absoluta”. Apreensão de celulares. Silêncio do escritório, silêncio do banco, silêncio do ministro. Um silêncio que, em outros tempos, seria suficiente para condenar meio Congresso — mas agora paira, incômodo, sobre a toga mais temida do país.
E o melhor — ou pior — é ver como a coluna se apoia em fatos, documentos, conversas, processos. De repente, o jornalismo do sistema Globo lembra como se faz jornalismo. Depois de anos justificando arbitrariedades “em nome do bem”, agora se surpreende com um contrato que envolve esposa, filhos e interesses milionários. E descobrem, pasmem, que isso pode configurar conflito, influência, vantagem indevida… ou, nas palavras que adoravam usar para outros: “possíveis crimes”.
Para apimentar ainda mais, Malu lembra que a própria esposa de Moraes, mais dez advogados, inclusive os filhos do ministro, assinaram uma queixa-crime em defesa do banqueiro posteriormente preso. Carimbo de família, assinatura de dinastia e um banco que tratava o escritório como prioridade sagrada. Difícil imaginar um roteiro mais constrangedor — e não para o acusado, mas para quem sempre julgou sem ser julgado.
O texto não poupa detalhes. Não poupa incômodos. E, mais revelador que tudo, não poupa Moraes.
É claro que tudo isso só chega agora. Só vira pauta agora. Só vira indignação agora. Quando Bolsonaro era o alvo, valia tudo — de decisões secretas a supressões constitucionais. Agora, quando a sombra recai sobre o intocável ministro, a imprensa decide ser imprensa.
Antes tarde do que nunca. Mas ainda assim, tarde.
No fim, Malu Gaspar não escreveu apenas uma coluna: escreveu, sem querer, a certidão da própria guinada do jornalismo que fingiu não ver, não ouvir e não falar — até que o incômodo ficasse grande demais para caber debaixo da toga.
